“A gente está ganhando cada vez mais espaço, mas ainda falta muito” *

“Quando seus caminhos estiverem obstruídos, quando seus valores estiverem esquecidos, quando suas dores enlouquecem os sentidos, tenha fé e resgate seus sentimentos perdidos”. Esse é o refrão da música “Território Babilônico”, do rapper maringaense Ivan Marinheiro, de 28 anos. E é exatamente assim que ele parece enxergar o mundo: de forma otimista. Com as melhores expectativas em relação ao futuro do rap e de sua carreira, ele tem dois discos gravados e o terceiro já está a caminho.

Não é para menos. O rap está em alta. Segundo dados do Spotify, é o gênero musical mais ouvido do mundo. Apesar disso, ainda sofre um pouco de preconceito. Mas para Ivan, se as pessoas interpretassem melhor a música, isso mudaria. “O rap exige interpretação, alguns gêneros dentro do rap são feitos para dançar, mas a maioria não é pra mexer com o corpo, é para mexer com a cabeça”.

Ivan trabalha, estuda e ainda sobra tempo para fazer música. E com muita qualidade. Em entrevista, ele conta sobre sua trajetória musical, sobre as dificuldades enfrentadas no rap e como isso está sendo superado.

Faz dez anos que você começou a cantar. Como foi esse início?
Faz dez anos desde que peguei o microfone pela primeira vez para cantar para um público, mas eu já fazia rimas desde uns dois ou três anos antes e improvisos na rua, de forma aleatória. Eu lembro a data bem específica porque foi um evento que a gente fez e tivemos que marcar cinco mil flyers à mão porque o amigo que fez a arte esqueceu de marcar. Eu lembro que foi dia 10/4/2005, ficou bem frisada porque a gente teve que marcar os panfletos para entregar.

E quando você começou a gostar de rap?
Como ouvinte, comecei a gostar bem novo. O primeiro contato que tive foi em 95, com Planet Hemp, que não é nem um rap em si, é mais uma mistura, mas tinha elementos do rap. Ouvi o primeiro disco deles, o “ Usuário” e a partir daí fui me interessando. Depois veio Racionais, Mc Naldinho. Fui vendo os anteriores que eu não conhecia, como Thaíde e Dj Hum, Dj Jamaica, Face da Morte. Ouvia muito essa linha gangsta, até porque não tinha muito essa linha de pensamento mais underground de rap, era mais aquele rap de militância mesmo e aí fui sendo um bom ouvinte. Ouvia muito os gringos também. Já tem uns 20 anos que gosto, desde os 8 anos já ouvia.

Como você decidiu que era isso que queria fazer?
Comecei escrevendo algumas coisas. Com 12 anos, eu acho, já escrevi a primeira letra. Depois surgiram os amigos que faziam os versos brincando, de forma aleatória, como falei. Aí fui fazendo e surgiu a oportunidade quando conheci os caras que são do meu grupo, o primeiro grupo que montei. O segundo, na verdade, porque o primeiro não teve repercussão alguma, que era o Unidade Um. Aí, com o Inteligência Verbal a gente chegou a fazer bastante shows e tocar em bastante eventos. Foi com esses caras que eu falei “meu, vamos formalizar isso aí”. A gente acabou idealizando, cada um correu atrás de uma coisa. A gente fez um evento de batalha e foi aí que peguei o microfone para cantar para uma plateia e foi essa data que ficou marcada por causa da marcação dos flyers. Só que devido a personalidade de cada um, a gente não está tão ativo e foi isso que me estimulou a ter um trabalho solo porque quando eu me proponho a fazer as coisas eu sou bem frenético, priorizo mesmo, tenho que fazer bem feito. Os caras não eram no mesmo ritmo, cada um tinha sua personalidade, família, os problemas pessoais, trabalho. E eu também trabalho e estudo, mas acabei fazendo um trabalho solo. A gente tem o grupo até hoje, mas não tão ativo. A gente está idealizando um retorno, mas nesse meio tempo, de 2010 para cá, trabalhei esses dois discos solo e estou fechando um terceiro. A ideia é não parar.

Qual está sendo a maior dificuldade para você?
De forma mais generalizada, dentro do município é porque o giro financeiro aqui é o agronegócio e, consequentemente, o gênero musical é o sertanejo, mas eu costumo dizer que é o sertanejo sem sertão, de área urbana, acaba sendo meio contraditório. Em si, é isso, a falta de apoio até das casas. A gente está ganhando cada vez mais espaço, mas ainda falta muito. O rap precisa de assessoria em várias áreas, precisa de empresários por trás, como qualquer outra gênero. Você tem várias áreas para poder dar certo. A gente tem que ser bem sincero, quem faz música quer viver disso. A gente não quer ficar carregando caixa nas costas, pagando o busão e tendo que pagar até a água que consome quando vai tocar em algum evento. Então, a gente quer mais dignidade no que se propõe a fazer. Ainda tem chão, é muita batalha, estou aí há dez anos e por mais que a gente busque profissionalizar ainda soa de forma muito amadora.

E qual a maior dificuldade de fazer música?
O poeta contemporâneo, que é o que o rapper é, não pode ficar abordando temáticas muito internas, da alma, você acaba não atingindo o público, as pessoas acabam não se identificando. Você além de poeta, tem que ser cronista, abordando a realidade ao seu redor. Dificuldade em si, eu particularmente não tenho. Humildemente falando, eu tenho uma certa facilidade para escrever. Eu pego para abordar uma temática, eu vou e desenvolvo bem. Só que a música depende muito do seu estado sentimental. E eu tiver para baixo, mais agressivo, eu vou soar mais agressivo na minha linha de escrita. Se eu estiver para cima, vou soar mais alegre. Acho que é isso, porque eu escrevo de forma muito aleatória. Eu não falo ‘Ah, vou abordar tal coisa porque vai ter uma repercussão maior’. O que eu estou a fim de escrever, eu escrevo. É trabalho, a partir do momento que você se insere no mercado… não que a gente esteja aqui só pra vender, a gente tem uma mensagem por trás da música para passar.

Aproveitando que você tocou nesse assunto da “mensagem da música. O Gilberto Gil disse recentemente em uma entrevista à Folha de S.Paulo, que essa mensagem de protesto da MPB acabou migrando para o rap. Você que isso traz ainda mais responsabilidade para vocês que pretendem passar essa mensagem?
Sim. A gente tem que considerar que o rap nasceu num berço de protesto, de caráter militante, só que como qualquer outro gênero musical, ele tem seus subgêneros. O rap mais politizado é importante, mas não dá para ficar batendo na mesma tecla. Mesmo tendo essa vertente gangsta, que aborda mais essa linha, que eu nem digo muito militante, mas da realidade da periferia, que o próprio público não interpreta que os caras estão narrando aquela realidade justamente para quem é ouvinte não viver aquilo. Tem também o rap mais underground que aborda outras temáticas, como eu mesmo, que abordo o estado espiritual, sentimental. Às vezes, o músico precisa ter a versatilidade de abordar tudo isso e ter um diferencial, mas o caráter militante não se perde, é a essência dele e nunca vai morrer, porque ele veio disso, veio para apaziguar a guerra, para protestar contra um sistema, contra um opressor, que a gente não enxerga mas está aí bem nítido e a gente sofre as conseqüências disso. Então, a música de militância é importante. Eu faço, mas não critico a trabalho de quem não faz, porque eu também acabo abordando outras temáticas e bebendo de outras fontes.

E em relação ao preconceito, você acredita que o rap ainda é visto com aquele olhar de desprezo, de ser “música de bandido”?
Geralmente quem não é adepto tem essa visão, mas é engraçado, porque, às vezes, o próprio público do rap quer se caracterizar disso, de ‘eu sou marginal’. Mas ele é marginal, porque ele está às margens, ele é periférico, mas às vezes acabam não interpretando certo. Como eu falei, às vezes o cara canta uma realidade criminal, só que as pessoas não enxergam que no final da música o cara morre, elas só enxergam o crime e aí dizem ‘é música de bandido’. É de bandido, sim, mas é do trabalhador também. Dentro das periferias não tem só bandido. Mas isso está mudando, porque a partir do momento em que o gênero tem um espaço maior, está mais na mídia, as pessoas passam a aceitar ele mais como música. O rap exige interpretação, alguns gêneros dentro do rap são feitos para dançar, mas a maioria não é pra mexer com o corpo, é para mexer com a cabeça.

E como você enxerga o futuro do rap maringaense?
É bem promissor. Você vê que as festas de rap acontecem com mais freqüência, o pessoal se interessa em fazer. Não sei até que ponto pela cultura ou para ganho financeiro, mas o importante é que está acontecendo. As expectativas são das melhores, a gente tem que pensar positivo. Estou trabalhando para isso, porque eu vivo rap, eu respiro rap. Eu não vivo sem música, ouço música todo dia, porque antes de ser um humilde músico, tenho que ser um bom ouvinte. Mas eu trabalho todo dia, estou buscando, eu estava terminando um disco e já estava gravando música para outro. Estou sempre organizando eventos, tentando fortalecer, fazer contato com a galera e difundir o trabalho em outros lugares. A galera está evoluindo, espaço tem para todo mundo, vai se destacar quem fizer com verdade, quem está buscando se profissionalizar mais e buscando qualidade no trabalho que vai ofertar para o público. E claro, vai da aceitação do público, porque o rap também tem esse caráter de que não é só fazer a música, mas de ser exemplo. O pessoal não vai se embasar só pela minha música, mas pelo fato de eu ser o cara que além de fazer música, estou na faculdade, estou trabalhando. Durmo pouco, trabalho muito e ainda estou fazendo minha música, acredito nisso, é o meu sonho e quero realizar e isso vai servir de parâmetro para os moleques da minha comunidade e de outras, tem que ter postura. É o seguinte: ‘você está exposto ao crime? Você está sendo bombardeado com coisas que podem te tirar da sua conduta? Mas tem esse caminho aqui, dá para você estudar, trampar, e fazer música também’. Tem que estimular o progresso dos menos favorecidos.

*Publicado originalmente no Jornal Matéria Prima

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